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Waldirene Nogueira, primeira mulher trans operada no Brasil!

Atualizado: 26 de ago. de 2023

Waldirene Nogueira, primeira mulher trans operada no país, sofreu abusos e preconceitos pelo governo e pela justiça, sendo chamada de “eunuco estilizado”. E lutou pelo direito de mudar seu nome civilmente.


Waldirene Nogueira


Waldirene nasceu em 1945, no interior de São Paulo. O pai era caminhoneiro e a mãe dona de casa e tiveram nove filhos. Na infância, a mesma, preferia as brincadeiras de menina. Enquanto os irmãos fingiam que eram caubóis, ela era a mocinha, diz ela em entrevista feita há BBC Brasil. Na adolescência, a feminilidade de Waldirene começou a transparecer. Isso ocorreu tanto em seu jeito de se portar como na sua aparência.


Ela não tinha pelos no rosto, sua voz não engrossou, sua cintura era levemente marcada, características consideradas pela maioria das pessoas como sendo femininas. Além disso, passou a se interessar por homens. Em consequência disso, os problemas com a família começaram a surgir. Isso é comum na maior parte dos casos, onde os familiares não entendem, não aceitam ou não conseguem lidar, de forma pacífica, com esse tipo de situação.


Segundo a reportagem, o pai de Waldirene, tentou tratá-la com hormônios masculinos. Até que a mesma decidiu se afastar da família e foi viver em uma cidade próxima, também no interior de São Paulo, ganhando a vida como manicure. Uma de suas paixões era o cinema. Um dos seus passatempos prediletos era recortar fotos de atores e atrizes estrangeiros em revistas da época.


Foi assim que conheceu a história de Coccinelle, dançarina de cabaré francesa que nasceu homem e foi operada. Waldirene passou a desejar para si a mesma metamorfose. Jacqueline Charlotteou Coccinelle, como era conhecida, se tornou a mais famosa atriz e cantora trans da França após a sua cirurgia de redesignação sexual, em 1958.


Jacqueline Charlotteou Coccinelle


Ela também foi a primeira transexual a ter seu casamento reconhecido pela justiça francesa, estabelecendo o precedente para o casamento legal de pessoas trans no país. Coccinelle ainda criou a ONG - Devenir Femme (Tornar-se Mulher), visando proporcionar apoio emocional e legal aos pacientes de cirurgia de redesignação. Coccinelle, faleceu na França em outubro de 2006, aos 75 anos.


Metamorfose.



Segundo a BBC Brasil, Waldirene foi orientada a procurar a endocrinologista, Dorina Epps, no Hospital das Clínicas de São Paulo, em 1969. Dorina Epps, foi pioneira nos estudos de gênero no Brasil. Nas clínicas, sob direcionamento dela, Waldirene foi extensivamente examinada, passando a frequentar sessões de terapia semanais. Logo, veio o laudo:


“Trata-se de paciente que demonstra possuir personalidade com características claramente femininas, estruturadas desde a infância”.

Naquela época, a cirurgia só estava disponível no exterior, por isso se cogitou que Waldirene fosse operada nos Estados Unidos. Foi então que o caso chegou ao doutor Roberto Farina, professor da Escola Paulista de Medicina. O médico já era pioneiro em cirurgias urogenitais, mas nunca havia feito operações de mudança de sexo.



Doutor Roberto Farina.


Esse tipo de cirurgia visa alterar as características físicas dos órgãos genitais, de forma que a pessoa possa ter um corpo adequado ao que considera correto para ela. Para realizar esse tipo de cirurgia, o Dr. Farina, fez várias cirurgias plásticas em cadáveres, estudando literatura especializa no assunto, para só então fazer o feito pioneiro no Brasil, no até então "Waldir".


Waldirene não temeu o pioneirismo. A cirurgia de redesignação sexual seria, segundo Waldirene, a “fixação do seu verdadeiro sexo, que sempre foi feminino".


Pioneirismo.


A primeira tentativa de cirurgia transgênero do mundo, ocorreu na década de trinta, realizada em Lili Elba, mas infelizmente a mesma morreu em uma das operações. Sua história inspirou o filme “A Garota Dinamarquesa” de 2015.


Lili Elba.


Cerca de vinte anos depois ocorreu o primeiro caso bem-sucedido, o da americana Christine Jorgensen, operada na Dinamarca em 1952.


Christine Jorgensen.


E em 1971, Waldirene, foi operada, em São Paulo. Cirurgia está realizada pela primeira vez no Brasil, sendo um sucesso. Todavia, em 1976, em plena ditadura militar, o Ministério Público de São Paulo descobriu o caso, o que acabou ocasionando a instauração de um Inquérito Policial contra o Dr. Roberto Farina.


Investigação.


Segundo os sites migalhas e Aventuras na História, nos relata que, "o documento de acusação produzido pelo procurador de Justiça, Luiz de Mello Kujawski, foi escrito com termos grosseiros e inaceitáveis para os dias de hoje, usando a expressão “eunuco estilizado”. ao se referir à transexualidade. O procurador, descreveu ainda que "os indivíduos que passavam pela cirurgia não eram transformados em mulheres, e sim em verdadeiros monstros, por meio de uma anômala conformação artificial".


E ao se referir a Waldirene, o relator empregou termos que foram utilizados de maneira pejorativa e preconceituosa como “doente mental', 'mutilado', 'eunuco', 'bichinha' a ridicularizando. A justiça considerou, Waldirene, uma "vítima". Os órgãos masculinos retirados na operação foram tidos como um “bem físico” tutelado pelo Estado, “inalienável e irrenunciável”. “Dizer-se que a vítima deu consentimento é irrelevante”, afirmou relatório policial sobre o caso.


A investigação foi intensificada quando Waldirene entrou na justiça para trocar seu nome, originalmente Waldir, nos documentos oficiais. Assim, o MP descobriu sua identidade original, iniciando um cerco judicial ao caso. Nesse momento, o "Instituto Médico Legal" foi convocado. Waldirene teria sido coagida e levada ao IML de São Paulo, por supostos policiais. Lá teria sido obrigada a de despir e a sofrer uma investigação pericial. Ela tentou, por um habeas corpus preventivo, evitar esse constrangimento, o que foi negado pela justiça paulistana.


A operação foi comandada pelo presidente do IML da época, doutor Harry Shibata, médico alinhado à repressão policial e ao governo militar. Nua e exposta, Waldirene foi fotografada em diversas posições. Após essa humilhação, houve o exame ginecológico. Com o auxílio de uma espátula de metal, o canal vaginal de Waldirene foi fotografado, medido e violentado, com a justificativa de se identificar o que ocorria no caso. Após essa violência, o laudo do IML declarou Waldirene mulher, pela característica biológica, declarando a intervenção médica “terapeuticamente necessária”.


Essa não foi a posição do promotor da investigação judicial, Messias Piva. Ele reprovou a posição do IML, chamando-a de sensacionalista e declarou: “A realidade é outra: Waldir Nogueira é um doente mental”. O caso gerou comoção internacional, médicos e cientistas de todo o mundo enviaram notas de apoio a Farina e de repúdio contra o estado brasileiro, condenando como as autoridades estavam lidando com o caso. No Brasil, Farina e a equipe estavam sozinhos.


E em 1978, o médico foi sentenciado pelo juiz Adalberto Spagnuolo a dois anos de prisão por lesão corporal gravíssima.



Em sua sentença, o magistrado escreveu que a cirurgia:


“Apenas serviu para mutilar um indivíduo do sexo masculino, transformou um doente mental em eunuco, satisfazendo seu desejo mórbido de castração. Isso tudo sem curar o mal psíquico, apenas o ridicularizando de vez, sem qualquer outra possibilidade de cura”.

Desfecho.


Após a condenação do Dr Farina, a defesa entrou com recurso. Waldirene escreveu uma carta pedindo para que os advogados de defesa não poupassem esforços para inocentar o médico. Segundo ela, Farina salvou sua vida.


A defesa de Farina sustentou que o crime de lesão nunca existiu “porque não houve lesão corporal, isto é, não houve inutilização de órgão ou função, mas tão somente adaptação de órgãos e criação de função até então inexistente, além do que a ação atribuída ao acusado serviu para preservar a saúde mental da pseudo-vítima".


Já a acusação pediu o aumento da pena, o promotor Piva escreveu em sua peça de acusação que: "admitindo-se que ele (Waldir) possa oferecer sua neovagina a homens, então somos forçados a concluir que agora ele é uma prostituta". O mesmo condenou a prática de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, chamando de "aberração". E continuou: "que os pais de família sejam obrigados a suportar, em seus lares, filhos homossexuais — do que ninguém está livre — e ainda mutilados”. Por fim, a justiça acolheu os argumentos da defesa e decidiu pela absolvição de Farina.


Apesar da absolvição de Farina, Waldirene perdeu o processo em que lutava para mudar seu nome nos documentos civis. Isso a impediu de exercer a carreira de contabilidade, na qual tinha se formado antes da cirurgia. Ela continuou a trabalhar como manicure. Sua certidão de nascimento só foi alterada quando tinha 65 anos, em 2010 e o RG, em janeiro de 2011. A conquista veio depois de uma nova batalha judicial.


Waldirene hoje.


No final da matéria realizada pela BBC BRASIL, nos relata que: "A vida de Waldirene nunca mais foi a mesma. O resultado, após tanta humilhação, foi que ela se tornou uma pessoa reclusa, levando uma vida solitária. A única exceção é o carnaval, sua grande paixão. Waldirene continuou a trabalhar como manicure, para complementar a aposentadoria de um salário mínimo. O salão fica na antessala da casa onde vive".


Atualmente, a mesma, vem enfrentando problemas de saúde, situação está que se torna ainda mais difícil quando não encontra médicos que entendam — e aceitem — suas cirurgias do passado. Segundo relato dela, um médico urologista com quem se consultou disse que “não acreditava” na sua vagina. Waldirene nunca se casou nem teve um relacionamento duradouro.


A matéria, conclui que “Ainda hoje Waldirene é uma mulher bonita, loira, curvilínea, quase sem rugas — embora custe a acreditar nisso".



Transexualidade.



É possível perceber que as justificativas dadas tanto no inquérito policial, bem como na sentença proferida pelo juiz, estão carregadas de agressividade e preconceito e passam uma visão distorcida do que realmente é a transexualidade. Primeiramente, a transexualidade não é mais considerada transtorno mental. Em 2018, a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a transexualidade da lista de transtornos mentais, porém, continua na Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID), mas em uma nova categoria, denominada “saúde sexual”.


Isso significa dizer, segundo a psicóloga Elis Pena, em seu texto sobre a Transexualidade que, "os transexuais passam a ser reconhecidos como pessoas que podem necessitar de cuidados médicos, especialmente durante um processo de transição de gênero (que envolve cirurgias e terapia hormonal) e não mais como pessoas que precisam de tratamento psiquiátrico".


Segundo, eunuco é um homem que teve sua genitália removida parcial ou totalmente, por motivação bélica, punição criminal ou imposição religiosa. No passado, estes homens eram utilizados em funções sociais específicas, como guardas ou serviçais dos haréns onde ficavam as esposas e concubinas reais.



A principal finalidade desse ato, este sim monstruoso, muitas vezes compulsório e com intenções perversas, era tornar os eunucos sexualmente impotentes, inutilizando seu órgão sexual, gerando graves consequências ao indivíduo, como hemorragias e infecções, que poderiam ocasionar a morte, e muitas outras, físicas e psicológicas.


Vale lembrar, que a cirurgia de redesignação sexual não inutiliza o órgão sexual ou sua função, mas tão somente adapta os órgãos já existentes. Terceiro, a transexualidade refere-se à condição do indivíduo cuja identidade de gênero diverge do sexo físico biológico, ou seja, é quando uma pessoa que nasceu biologicamente homem, mas se identifica como mulher e vice-versa.


Portanto, não há, nestes casos, a dita “perversidade sexual”, como descrito pelas autoridades responsáveis pelo caso. Segundo relato da psicóloga Elis Pena:


“A partir do momento em que a pessoa trans realiza a transição de gênero, é possível verificar a diminuição de questões de ansiedade e depressão. Viver em um corpo que não concorda com seu sentimento é um grande peso para muitas pessoas. A partir do momento em que enxergam no espelho o que enxergam quando fecham seus olhos, sentem grande alívio”.

Mas, porque nossas autoridades judiciais e policiais, se posicionam de forma tão violenta e intolerante em casos assim, que infelizmente não se restringem ao passado. A origem da Violência, segundo o livro "Transexualidade e Travestilidade na Saúde", produzido em 2015, pelo Ministério da saúde. Nos diz que: “O Brasil tem, em sua história, o uso da violência a populações indígenas, negras, pessoas de baixa renda, homossexuais e transexuais".


Tal prática remonta da era colonial e perdurou ganhando proporções absurdas, na época da ditadura, com a militarização da segurança. Tal herança está disseminada nas delegacias comuns, e é praticada tanto por policiais civis como militares que, cotidianamente, tratam pessoas trans como seres híbridos ou como subversivos, negando-lhes o direito de exercer sua identidade de gênero.



Assim como, entre os polícias, há o conceito de que “bandido não é gente”, na mesma lógica, “travesti é homem de cabelo comprido ou homem de saia” e só por isso é igualada a bandidos. Não é incomum ouvirmos relatos de extorsão, humilhação ou desmandos, por parte de policiais, a travestis e transexuais profissionais do sexo”.


Ainda: “Ao longo do processo de cristianização do novo mundo, propagou-se a teoria ocidental cristã de que o amor entre pessoas do mesmo sexo ou a travestilidade e a transexualidade são pecados, crime e doença. O resultado disto, é que as motivações das homofobias variam desde a prática religiosa da maioria da população, que é cristã e condena massivamente a homossexualidade, à sociedade heteronormativa, machista e patriarcal, a qual normatiza o conceito binário do macho e fêmea, representados respectivamente pelo homem e pela mulher, condenando todos que destoam do padrão binário, colocando-os em um patamar de subalternidade”.


O texto conclui que é "urgente a aprovação de mecanismos jurídicos que reconheçam essas identidades para serem integradas contumazmente em todas as políticas públicas já existentes. Apenas assim venceremos o primeiro round contra a prática transfóbica perpetuada no organismo estatal”.

Direito de ser mulher.


Apenas, em 1997, vinte e seis anos depois da cirurgia pioneira, o Conselho Federal de Medicina autorizou a realização desse tipo de cirurgia no Brasil. A partir de 2008, o tratamento foi disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), gratuitamente. O desejo de mudança no registro civil de Waldirene é, desde 2018, um direito garantido pelo STF! E em 2019, a Maioria dos ministros do STF votou por enquadrar a homofobia e transfobia como crime de racismo.


Futuro.



Os avanços têm acontecido, mas ainda estamos muito longe do ideal. A sociedade brasileira não é justa, igualitária, democrática e muito menos tolerante. Se faz necessário adotar medidas legislativas que visem eliminar a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Além de criar protocolos e medidas de atendimento mais efetivos e mais humanizados nas delegacias de polícia, bem como no judiciário.


O Brasil é o país que mais mata transsexuais no mundo, e também o que mais consome pornografia envolvendo pessoas trans. As pessoas trans, diante dessa dualidade hipócrita, estão conseguindo com muito sacrifício e determinação driblar esses muitos obstáculos e cada vez mais vemos, não só aqui no Brasil, mas em boa parte do mundo, pessoas assumindo publicamente sua verdadeira identidade de gênero, conquistando espaços, não só mundo artístico, mas também no mercado de trabalho, ocupando cargos políticos, lutando e conquistando direitos para muitos.


Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG).


Vale lembrar, que os princípios da igualdade e da dignidade humana, previstos na Cf/88, são direitos que pertencem também a comunidade LGBTQIAP+, pois se aplicam a TODOS, sem exceção.


Veja o texto sobre outra mídia digital. Canal: @historiafeminina.



Textos retirados na íntegra e parágrafos modificados dos seguintes sites:


'Monstro, prostituta, bichinha': como a Justiça condenou a 1ª cirurgia de mudança de sexo do Brasil e sentenciou médico à prisão | Bem Estar | G1 (globo.com)



Aventuras na História · Sobre Waldirene Nogueira (uol.com.br)


A História de Waldirene (unifesp.br)


O que é transfobia? | Politize!


Aventuras na História · Profissão do Diabo: como era a vida dos eunucos (uol.com.br)


Coccinelle – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)


Coccinelle, a primeira celebridade transgênero da França (universoretro.com.br)

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