Em 7 de setembro de 1822, às margens do riacho Ipiranga, Dom Pedro I proclama a Independência do Brasil, que até então era uma Colônia de Portugal. A narrativa desse momento heroico, no entanto, não costuma destacar a atuação das mulheres que, mesmo não tendo direito ao voto e impedidas de participar da vida política, ocuparam a cena pública e tomaram corajosamente parte nesses combates por meio de diferentes estratégias.
Seja escrevendo panfletos anticoloniais, conspirando nos bastidores do poder, ou mesmo liderando revoltas e lutando no front, as mulheres desempenharam papéis-chave nesse momento decisivo. É o que diz a sinopse do livro: INDEPENDÊNCIA DO BRASIL — AS MULHERES QUE ESTAVAM LÁ — escrito por Heloisa M. Starling e Antonia Pellegrino.
A obra destaca a história de sete mulheres que participaram da independência do Brasil, resgatando-as do anonimato. Falarei de quatro mulheres que foram heroínas nessa revolução.
“Diga ao povo que fico”.
“Diga ao povo que fico”, a célebre frase dita por D. Pedro I, em janeiro de 1822, foi vista pelos portugueses como um ato de arrogância e rebeldia do então príncipe regente. No Brasil, o acontecimento, para alguns historiadores, foi festejado como uma decisão democrática, seguindo a vontade do povo. O "Dia do Fico", há duzentos anos, não foi só uma materialização da queda de braço entre o reino de Portugal e a colônia brasileira, mas o início de confrontos violentos, principalmente na região nordeste do País, que culminariam mais tarde na Independência.
Dom Pedro aclamado pela decisão de ficar no Brasil. Autor: J.B. Debret
Por de trás do palco principal da independência, quatro mulheres destemidas lutaram mostrando garra, força, coragem e destreza, mudando os rumos da história em uma demonstração da força feminina em pleno século XIX.
Abadessa: Joana Angélica de Jesus.
Salvador vivia dias de tensão, moradores eram obrigados a abandonar a cidade com a família enquanto viam tropas portuguesas saquearem suas casas e assassinar parentes. Já passava do meio-dia de 20 de fevereiro de 1822 quando soldados de Portugal tentaram invadir o Convento da Lapa sob o pretexto de que ali se abrigavam rebeldes.
Retrato de Joana Angélica feito pelo artista Domenico Failutti e
pertencente ao Museu Paulista da USP - Museu do Ipiranga
Os soldados foram recebidos pela abadessa Joana Angélica de Jesus, senhora conhecida e admirada por sua virtude e religiosidade junto a população local. Aos 60 anos, ela se colocou diante da porta para proteger as demais irmãs que tentavam fugir pelos fundos. “Para trás, bárbaros! Respeitai a casa de Deus! Só entrarão passando por cima do meu cadáver!”, teria dito antes de ser golpeada por uma baioneta e morrer em seguida.
Martírio de Sóror Angélica.
Joana Angélica se tornou um símbolo de resistência contra o autoritarismo português e a primeira mártir do movimento de independência que ocorreria sete meses mais tarde.
Imperatriz: Maria Leopoldina.
Retrato por Josef Kreutzinger, 1815.
Embora seja pouco ressaltado nos livros de história, a Independência do nosso país foi feita também pelas de uma importante mulher: Dona Maria Leopoldina, primeira Imperatriz do Brasil. Segundo site: Valquírias, Maria Leopoldina, era uma mulher interessada em política e no futuro do Brasil, e uma estrategista fundamental para o movimento de independência começar a tomar forma.
Apesar de ter seu poder e influência limitados por sua condição de princesa e imperatriz, D. Leopoldina é revelada como uma figura inteligente e preparada para a vida política, que possuía uma visão clara do que entendia ser o melhor para o Brasil. Ela fez o possível para chegar ao destino que ela entendia como certo.
Em 1820, acontecia em Portugal uma Revolta, chamada a "Revolução Liberal do Porto", esse movimento tinha por objetivo a autonomia portuguesa, a promulgação de uma constituição e retomar a colonização do Brasil. Com isso D. João VI volta para Portugal e atribui a D. Pedro I a regência do Brasil. Em seguida, várias medidas vindas de Portugal pressionavam o governo de D. Pedro I, na tentativa de forçá-lo a regressar a Portugal.
Alegoria da Revolução Liberal do Porto: a Liberdade esmaga sob seus pés a tirania e soldados e a população carregam bandeiras pedindo "Constituição".
As notícias repercutiram como uma declaração de guerra, provocando tumultos e manifestações de desagrado por parte do povo brasileiro. Em uma tentativa de apaziguar os ânimos, Dom Pedro I partiu, em agosto de 1922, para São Paulo, deixando Maria Leopoldina no Palácio Imperial como regente interina, ordem feita por meio de um decreto lavrado no dia 13 de agosto. Leopoldina tornou-se, então, a primeira mulher a governar o Brasil.
Pelo decreto, Maria Leopoldina ficava “autorizada para, com os referidos ministros e secretários do estado, tomar todas as medidas necessárias e urgentes ao bem e salvação do estado”, mas o decreto não dava a ela plenos poderes, não podendo decidir nada sem a concordância do marido. No entanto, ao receber uma ordem expressa da Coroa Portuguesa exigindo o retorno imediato de Dom Pedro a Portugal, Leopoldina convocou, em 2 de setembro de 1822, o conselho de Estado.
Decreto de 13 de agosto de 1822 que nomeia D. Leopoldina para ficar
a presidir os despachos do expediente e às sessões do Conselho de
Estado no Rio de Janeiro enquanto da viagem de D. Pedro de Alcântara,
então Príncipe Regente, para São Paulo dias antes da independência.
E após deliberar e ouvir atentamente a opinião dos ministros sobre o rompimento com Portugal, ela concluiu que o atual estado de vassalagem do Brasil era insustentável e decidiu que a melhor opção era pela independência do Brasil.
Dona Leopoldina, então Princesa Real-Regente do Reino do Brasil, preside a reunião do Conselho de Ministros em 2 de setembro de 1822.
Em seguida, Leopoldina pegou papel e pena e escreveu a seguinte carta a D. Pedro:
Pedro, o Brasil está como um vulcão. Até no paço há revolucionários. Até oficiais das tropas são revolucionários…O Brasil será em vossas mãos um grande país. O Brasil vos quer para seu monarca. Com o vosso apoio ou sem o vosso apoio ele (Brasil) fará a sua separação. O pomo está maduro, colhei-o já, senão apodrece… Tereis o apoio do Brasil inteiro e, contra a vontade do povo brasileiro, os soldados portugueses que aqui estão nada podem fazer. Leopoldina”.
A carta deixa muito claro a destreza de Leopoldina nas palavras para instigar o marido a fazer a independência e sua perspicácia em ver que este era o melhor caminho a seguir. O próprio Bonifácio, comenta em tom de brincadeira dizendo querer que o príncipe fosse ela. O correio chegou a São Paulo no dia 7 de setembro de 1822 e encontrou o príncipe na região onde hoje se localiza o bairro do Ipiranga. Após a leitura da carta de sua esposa, juntamente com outra de José Bonifácio, D. Pedro seguiu os conselhos de seus ministros e de Leopoldina, proclamando assim a Independência do Brasil.
Proclamação da Independência, de François-René Moreaux (1844)
Segundo o historiador e biógrafo Paulo Rezzutti, a participação da Imperatriz no processo histórico tem sido revisitada intensamente nos últimos anos. É praticamente unanimidade o reconhecimento do papel de Leopoldina como arquiteta da Independência. No entanto, esse discurso acabou fazendo nascer um boato: o de que ela teria assinado um decreto de independência. Para Rezzutti, isso é “fake news histórica”.
Ele relata não haver um decreto da independência e sim uma ata do conselho deliberativo de estado, que recomenda e implora que Dom Pedro I fique no Brasil e faça a independência. Embora haja muito debate sobre vários episódios determinantes para o processo de separação entre Brasil e Portugal, isso não tira o protagonismo desempenhado pela jovem princesa naquela conjuntura política. Ela foi diretamente responsável por Dom Pedro I ficar no Brasil. Ela estava mais decidida do que ele a ficar.
Maria Leopoldina foi uma peça fundamental e determinante para a proclamação da Independência do Brasil. O site Valquírias ressalta que, por anos, sua figura ficou ligada à da esposa traída e melancólica, o que não deixa de ser verdade, principalmente nos últimos anos de sua curta vida, mas Maria Leopoldina foi muito mais do que isso.
O que deve ficar para a história é que Maria Leopoldina abraçou com vontade a nova pátria e fez o possível, diante de sua posição, para melhorar a vida da colônia e vê-la liberta de Portugal.
Retrato por Luís Schlappriz, no Museu do Estado de Pernambuco.
Ela fez muito pelo Brasil, quando poucos em sua posição teriam feito o mesmo, e por isso deve ser lembrada.
Soldada: Maria Quitéria de Jesus.
Apesar de Dom Pedro I, proclamar a independência, a emancipação política do Brasil, não se deu imediatamente. O processo de reconhecimento interno e externo da independência se arrastou por mais de três anos e envolveu muito trabalho diplomático e lutas. Enquanto uma batalha diplomática era liderada por Dona Leopoldina e os ministros em prol do reconhecimento do Império do Brasil, na província da Bahia uma batalha sanguenta pela independência servia de palco para o protagonismo de Maria Quitéria, a mais famosa das mulheres separatistas.
Ela sabia montar, caçar e manejar armas de fogo. Fugiu de casa, disfarçou-se de homem e se alistou com o nome do cunhado,José Medeiros, e em seguida partiu com as tropas e lutou contra os portugueses, numa época em que às mulheres não eram permitidas no exército, sendo limitadas a vida doméstica. Mesmo depois de seu disfarce ser revelado, ela foi mantida no exército por seu excepcional manejo com armas.
Quitéria de Jesus (Domenico Failutti, c. 1920)
Assim que a história dessa Joana d’Arc brasileira chegou aos ouvidos de D. Pedro I, o imperador ficou impressionado pelo seu exemplo de coragem e a convidou à corte, onde foi condecorada com a Ordem do Cruzeiro.
Maria Quitéria tornou-se um símbolo da luta pela Independência do Brasil, sendo a primeira mulher a entrar para o Exército Brasileiro. Todavia, ela não foi a única mulher a ir para guerra, outras tantas mulheres indígenas e pretas, também participaram dessa revolução. Uma delas foi Maria Felipa de Oliveira.
Líder comunitária: Maria Felipa de Oliveira.
Maria Felipa foi uma líder comunitária que ajudou a frear o avanço das tropas portuguesas pelo território brasileiro. Trabalhadora braçal, pescadora e marisqueira, ela liderou um grupo de 200 colegas em batalhas contra os portugueses. Conta-se que Felipa pedia às mulheres bonitas da ilha para que passeassem pela praia para, assim, atrair os soldados portugueses.
E então, aproveitando-se da aproximação dos barcos, ela os incendiava. Outros relatos nos dizem que ela e suas companheiras usavam uma planta urticante para golpear soldados e insidiar os navios. Somente o grupo de Maria Felipa queimou 40 embarcações portuguesas.
Segundo a historiadora, Giovanna Trevelin, muitas dessas histórias permanecem e ganham força a partir de uma tradição oral, e são de muita relevância para entendermos que outras narrativas, marginalizadas até aqui, também foram decisivas na Independência do Brasil. Em julho de 2018, Maria Felipa, Joana Angélica, Maria Quitéria e a imperatriz Maria Leopoldina foram declaradas Heroínas da Pátria Brasileira.
Esse reconhecimento e revisão histórica feita sobre essas quatro mulheres contribuiu em muito para uma reavaliação dos papéis de gênero e participação feminina na independência do Brasil. Recentemente, livros, cursos e podcastes organizam-se para celebrar a importância dessas mulheres na história nacional. O Brasil tem uma dívida histórica eterna para com essas personagens.
Representatividade.
Maria Leopoldina, Maria Quitéria, Maria Felipa e Joanna Angélica são os nomes mais famosos, mais não os únicos. Pesquisadores e historiadores acreditam que muitas outras mulheres estiveram envolvidas nas lutas pela independência brasileira.
O sumiço de seus nomes nos relatos deste episódio é resultado justamente da lógica machista de um tempo em que a atuação delas era omitida dos registros, somado a uma historiografia que as ignorava.
A importância da participação feminina no processo de Independência do Brasil, em 1822, está aumentando à medida que surgem novos estudos e documentos que trazem nomes até então desconhecidos. A professora de história, Patrícia Valim, lembra a trajetória de Urânia Vanério, baiana que, aos 10 anos, publicou um dos principais panfletos pró-Independência. Os versos da menina, alfabetizada em várias línguas, criticavam a monarquia da Coroa e os combates entre tropas portuguesas e baianas em Salvador.
A historiadora Trevelin também se deparou em suas pesquisas, com relatos de uma irmandade de mulheres baianas chamada "Caretas do Mingau", que teriam lutado diretamente contra os portugueses. "A história mais popular, que ganhou força na região, é que essas mulheres se vestiam de branco e saíam às ruas para assustar os portugueses, que fugiam achando que elas eram almas penadas. E assim elas conseguiam levar comidas e armamentos para seus filhos e maridos que lutavam contra as tropas, o que justificava as panelas de mingau na cabeça”, relata ela.
Podemos destacar também outro grupo, como o das Senhoras da elite Baiana, que entregaram a Leopoldina uma petição assinada por 186 mulheres, no qual felicitava e agradecia à Leopoldina no que tange às resoluções políticas que vinham sendo tomadas, por ela, em relação ao Brasil, reconhecendo-a como digna do trono. Além disso, as baianas oferecem seus corações, que, segundo a carta, eram as únicas coisas que as mulheres poderiam oferecer.
Com efeito, essa foi uma das primeiras demonstrações de reconhecimento público que o povo brasileiro, principalmente as mulheres, direcionaram para Dona Leopoldina. Em carta ao marido, a princesa disse que “isso prova que as mulheres têm mais ânimo e são mais aderentes à causa boa”. Trevelin ressalta a participação de outra mulher, pouco lembrada, a da pintora, escritora e historiadora inglesa Maria Graham, ligada à família imperial brasileira.
Ela se destacou como a voz de uma mulher em meio a uma historiografia predominantemente masculina. A inglesa escreveu um diário sobre o Brasil, onde contou como foi o processo de independência, escrevendo inclusive a respeito de Maria Quitéria.
Assim, se consagrou como uma importante fonte a respeito da temática, com uma história narrada pela perspectiva feminina, incomum no período.
Maria Callcott, retratada por seu segundo marido, Sir August Callcott.
Conclusão.
Contar as histórias dessas mulheres incríveis pode ajudar a mudar o futuro de como comemoramos o dia 7 de setembro, um evento divulgado como majoritariamente masculino, em que seu único protagonista, por muitas vezes, é o imperador português Dom Pedro I. É ora de começarmos a olhar para outras experiências e trajetórias bem mais inclusivas lideradas por mulheres pretas e indígenas e de muitas outras mulheres. O 7 de setembro, é um ato histórico que pertence a todos os brasileiros.
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Fontes; Textos retirados na íntegra e trechos modificados dos seguintes sites:
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