Com apenas 12 anos fez sua primeira descoberta, um fóssil de ictiossauro, um tipo de “peixe-lagarto”, animal extinto um pouco antes dos dinossauros. Ao longo de sua vida, ela descobriu centenas de fósseis, incluindo o primeiro pterossauro fora da Alemanha.
Suas descobertas contribuíram para importantes mudanças no pensamento científico sobre a vida pré-histórica e para a geologia, e isso tudo em pleno século XIX. Uma época em que a profissão de paleontólogo era exercida exclusivamente por homens.
Biografia.
Mary Anning, nasceu em 1799, em Lyme Regis, na Inglaterra, no condado de Dorset. Essa região é conhecida como Costa Jurássica, devido à alta quantidade de fósseis existente por lá.
A costa Jurássica de Charmouth, Dorset, onde a família Anning fez algumas de suas descobertas.
Seu pai, Richard Anning, era carpinteiro, que aumentava a renda mensal escavando fósseis nos recifes e vendendo-os aos turistas. Casou com Mary Moore, conhecida como Molly, em 8 de agosto de 1793, em Blandford Forum. O casal se mudou para Lyme, em uma casa construída numa ponte, no centro.
Uma moradora local chamada, Shelley Emling, escreveu que a família vivia tão perto do mar que as mesmas tempestades que revelavam os fósseis nos recifes, algumas vezes inundavam a casa dos Anning, obrigando-os a subir as escadas para evitar que se afogassem.
Rascunho de 1842 da casa da família Anning.
Richard e Molly tiveram dez filhos. A primeira, Mary, nasceu em 1794. Seguiu-se outra menina, que morreu logo depois; Josepeh, em 1796 e outro menino em 1798, que morreu ainda bebê. Em dezembro do mesmo ano, a filha mais velha, então com quatro anos, morreu quando suas roupas pegaram fogo, provavelmente enquanto adicionava mais lenha na lareira da casa.
Cinco meses depois da tragédia, Mary Anning nasceu, seus país a chamaram de Mary, em homenagem à irmã morta. Mais crianças nasceram depois dela, mas nenhuma sobreviveu mais que alguns anos. Apenas Mary e Joseph chegaram à idade adulta. O alto índice de mortalidade infantil na família Mary Anning não era incomum. Quase metade das crianças nascidas na Inglaterra durante o século XIX morriam antes dos cinco anos e não era diferente em Lyme Regis, muitas crianças morriam por varíola e sarampo, o que era infelizmente bastante comum.
Em 19 de agosto de 1800, quando Mary tinha apenas quinze meses de idade, um evento acabou a tornando uma lenda local. Ela era segurada por uma vizinha, Elizabeth Haskings que, junto de outras duas mulheres, assistiam a um show equestre junto a uma árvore, quando um raio atingiu a árvore, matando todas as mulheres embaixo. Quem estava por perto correu para o local e encontraram o bebê, que foi banhado em água quente e reviveu.
Um médico local declarou que ela sobreviveu por um milagre. Sua família disse que ela era um bebê que vivia doente antes do evento, mas depois ela nunca mais teve nenhum problema. Por muitos anos, os membros da comunidade atribuíram a curiosidade, inteligência e personalidade marcante de Mary ao incidente.
A família de Mary Anning era dissidente, os dissidentes ingleses, também chamados de não conformistas ou congregacionalistas, foram reformadores na Inglaterra que preferiram não continuar vinculados à Igreja Anglicana, que era controlada pelos Reis da Inglaterra, e fundaram as suas próprias congregações religiosas, nos séculos XVII e XVIII , que eram autônomas e independentes.
Além disso, os dissidentes não eram permitidos nas universidades, nem no Exército e eram excluídos por lei de várias profissões o que gerava bastante discriminação. Isso se tornou um problema para Mary Anning mais tarde, pois por ser mulher e uma dissidente, ela não pôde participar plenamente da comunidade científica do século XIX do Reino Unido, composta principalmente por homens anglicanos.
Sua educação formal foi extremamente limitada. Mary frequentava a escola dominical congregacionalista onde aprendeu a ler e escrever. A doutrina congregacionalista, diferente da Igreja Anglicana da época, acreditava na importância da educação para os pobres.
Seu bem mais valioso era um volume encadernado da revista Dissenters' Theological Magazine and Review, em que o pastor da família, o reverendo James Wheaton, tinha publicado dois ensaios, um insistindo em que Deus criou o mundo em seis dias, o outro instigando os dissidentes a estudar a nova ciência chamada de geologia.
Fósseis e os negócios da família.
No final do século XVIII, Lyme Regis se tornou popular por ser um resort litorâneo, especialmente depois do início das Guerras Revolucionárias Francesas que tornaram as viagens pela Europa bastante perigosas. Assim, um grande número de turistas ricos e de classe média começaram a se estabelecer no local, não se arriscando a viajar para o exterior.
Antes mesmo do tempo de Mary, os habitantes aumentavam suas rendas mensais com a venda do que eles chamavam de "curios" aos visitantes. Mas esse tipo de nome inusitado para se referir a um fóssil, era comum. Os fósseis tinham nomes como "cobras de pedras" (ammonites) e "dedos do diabo" (belemnites), que algumas vezes eram atribuídos a propriedades místicas e medicinais.
"Cobras de pedras" (ammonites) / "Dedos do diabo" (belemnites).
Colecionar fósseis estava na moda no final do século XVIII e início do século XIX, primeiro como passatempo, mas gradualmente se transformou em ciência, assim como a geologia e a biologia eram compreendidas.
A fonte da maioria desses fósseis eram os costões rochosos de Lyme Regis, parte da formação geológica conhecida como Blue Lias. Ela consiste em camadas alternadas de calcário e xisto, que eram antigos sedimentos de mar raso no período Jurássico, cerca de 210 a 195 milhões de anos atrás. É um dos locais mais ricos em fósseis da Grã-Bretanha. Estes penhascos são perigosamente instáveis, especialmente no inverno quando as chuvas podem causar deslizamentos. Foi em um desses invernos que coletores costumavam se afogar.
Richard, pai de Mary e Joseph, costumava levar os filhos nessas expedições para coletar fósseis para tentar aumentar a renda da família. Foi ele quem ensinou Mary a procurar e limpar os fósseis que encontravam juntos na praia. Muitas vezes, ele colocava esses fósseis em exibição e os vendia para os turistas em uma mesa improvisada fora da casa.
Illustration of 19th century paleontologist Mary Anning with collection of fossils.
Seu pai sofria de tuberculosa e de ferimentos sofridos pela queda de um penhasco. Quando ele morreu em novembro de 1810, aos 44 anos, deixou a família com dívidas significativas e nenhuma reserva de dinheiro.
A família continuou coletando e vendendo fósseis e estabeleceu uma banca de curiosidades perto da costa. A mãe de Mary, Molly, inicialmente comandou os negócios da família depois da morte de Richard. Seu irmão, Joseph começou a trabalhar como aprendiz de tapeceiro, mas ele permaneceu ativo na coleta de fósseis até pelo menos 1825. Nessa época, Mary assumiu os negócios.
Descobertas.
Sua primeira descoberta significativa se deu em 1811, quando Mary tinha apenas 12 anos. Joseph encontrou um crânio de ictiossauro de 1,2m, Mary então procurou e cavou meticulosamente o local, encontrando o restante do esqueleto de 5,2 metros de comprimento.
Desenho de 1814 de Sir Everard Home, primeiro barão da casa de Baronet, mostrando o crânio do Ichthyosaurus platyodon encontrado por Joseph Anning em 1811.
Henry Hoste Henley, lorde da casa de Colway, pagou cerca de 23 libras pelo fóssil, algo equivalente a 88 reais, hoje, e então vendeu para o colecionador, William Bullock, que o exibiu em Londres.
Isso gerou um grande interesse, pois na época a maioria das pessoas ainda acreditava no evento bíblico da criação e nas datas estabelecidas pela Bíblia, de que a Terra teria apenas alguns milhares de anos e que essas irreconhecíveis criaturas descobertas (dinossauros) tinham simplesmente migrado de longe, ou que eram simplesmente esqueletos de animais atuais. Isso levantou questões e muitos debates sobre a história dos seres vivos e da Terra em si.
O fóssil foi depois vendido por 45 libras e 5 xelins em um leilão em maio de 1819 como um "fóssil de crocodilo" para Charles Konig, para o Museu Britânico, que já tinha sugerido o nome de ictiossauro para ele. Sabe-se que hoje o ictiossauro, era um tipo de “peixe-lagarto”, animal extinto um pouco antes dos dinossauros.
Em 1823, Mary encontrou o primeiro esqueleto completo de um Plesiossauro, um réptil marinho tão estranho, anatomicamente, que os cientistas duvidaram da veracidade do fóssil. Assim, foi convocada uma reunião na Sociedade Geológica de Londres, a qual Mary não fora convidada a participar, para discutir acerca da autenticidade do fóssil e, de fato, a autenticidade foi confirmada.
Outra contribuição científica de Mary que marcou sua história na paleontologia, foi a descoberta, em 1828, de um fóssil que apresentava uma longa cauda e asas. Esse réptil voador foi o primeiro pterossauro encontrado fora da Alemanha que, posteriormente, recebeu o nome de peterodaquitilo
Ao contrário dos ictiossauros e plesiossauros, os pterossauros tinham asas, e acreditava-se que eram os maiores animais voadores de todos os tempos. Além disso, Mary Anning também descobriu que alguns compostos estranhos, chamados na época de “pedras bezoar”, eram, na verdade, fezes fossilizados. Por causa de sua experiência caçando centenas de fósseis, ela percebeu que essas rochas sempre apareciam na região onde deveria estar o intestino dos animais.
Dentro dessas “pedras”, ela encontrou pequenos ossos, de animais menores, indicando que eles foram ingeridos por um predador. E graças a essa conclusão, podemos saber se um dinossauro era carnívoro ou vegetariano. Hoje, as fezes fossilizadas são chamadas de coprólitos, e são essenciais para entender a cadeia alimentar da pré-história.
A vida de Mary influenciou seu amigo de infância e famoso geólogo, Henry De la Beche a pintar, em 1830, a obra “Duria Antiquior: um Dorset mais antigo” que tinha o objetivo de arrecadar dinheiro para a cientista, que ainda possuía dificuldades financeiras. A obra apresentava os animais extintos que Mary havia descoberto e essa forma de arte existe até os dias de hoje e é chamada de paleoarte.
Obra “Duria Antiquior: um Dorset mais antigo”.
Mary continuou a desenterrar fósseis e mais fósseis. Como ela vendia várias das descobertas, isso aumentava cada vez mais o interesse do público em geologia e paleontologia. As pessoas enchiam as exibições de fósseis ao redor do país, e até os maiores museus tinham dificuldade em lidar com tanta demanda.
Mas a coleta de fósseis era extremamente difícil de se fazer, isso era devido as condições do local. As coletas nos costões rochosos de Lyme Regis eram mais produtivas durante o inverno, quando deslizamentos de terra expunham os fósseis – que tinham que ser coletados rapidamente, antes que as ondas do mar os levassem.
Mary Anning e seu cachorro Troy, pintados antes de 1842; o afloramento de Golden Cap pode ser visto ao fundo.
As rochas ficavam em contato direto com o oceano, e uma onda mais forte poderia facilmente arrastar qualquer um que estivesse se esgueirando pelos penhascos. E de fato, o cachorro de Mary, Troy – que sempre a acompanhava nas suas coletas – infelizmente encontrou este triste destino, e sua dona quase o acompanhou na ocasião.
Vida acadêmica.
De modo a compreender melhor suas descobertas, Mary Anning aprendeu anatomia e geologia de maneira autodidata. A mesma tornou-se bem conhecida nos círculos geológicos na Grã-Bretanha, Europa e América. A cientista se comunicava com paleontólogos de renome da época por meio de cartas. Ela também negociava os fósseis que encontrava.
Um desenho de um plesiossauro feito por Mary Anning.
Ela chegou a trabalhar com o famoso paleontólogo, Richard Owen, que cunhou o termo “dinossauro”, em 1841. Vale ressaltar, que a maioria dos pesquisadores que publicaram pesquisas sobre fósseis encontrados por ela não teve sequer a decência de citar o seu nome em seus trabalhos.
Mary Anning nunca publicou um artigo científico em vida, a única peça que alguns estudiosos consideram como um artigo científico dela, foi uma carta que a mesma escreveu à revista científica Magazine of Natural History questionando e corrigindo algumas afirmações sobre um fóssil de tubarão do gênero Hybodus, recentemente descrito naquela revista.
Preconceito.
Apesar do sacrifício na coleta de fósseis, de seu pioneirismo e das descobertas de extrema importância, para o ramo da paleontologia, Mary Anning, foi desprezada pela comunidade científica da época, que não concedia a ela os créditos de suas descobertas e hesitava em reconhecer seu trabalho como paleontóloga, isso porque ela era mulher, pobre e sem formação universitária – além de pertencer a uma minoria religiosa que era perseguida pela Igreja Anglicana, os Congregacionalistas.
Vale ressaltar, que a sociedade machista e aristocrática do período, proibia às mulheres de se associar à Sociedade Geológica de Londres. só passou a aceitar mulheres em 1904. Em uma carta, Mary Anning, escreveu:
O mundo usou-me tão maliciosamente, que eu temo que ele fez-me suspeita de todos”.
Morte.
Mary Anning, morreu em 9 de março de 1847, em sua cidade natal, aos 47 anos, devido a um câncer de mama. E apesar de uma vida de descobertas científicas extraordinárias, ela morreu pobre e sem o devido reconhecimento.
Quando Mary foi diagnosticada com câncer, em 1846, a Sociedade Geológica de Londres levantou fundos entre seus membros para custear suas despesas e o conselho do recém-criado Museu do Condado de Dorset a nomeou membro honorário. Ela foi sepultada em 15 de março no cemitério da igreja local.
Lápide de Mary Anning.
Membros da Sociedade Geológico contribuíram para a confecção de um vitral na igreja em sua memória, inaugurado em 1850. Atualmente, o Museu de História Natural de Londres exibe suas descobertas e reconhece seu trabalho científico, concedendo-a os devidos créditos.
Fóssil plesiossauro no museu de história natural de Londres.
A região em que Mary Anning procurava os fósseis, Costa Jurássica, é Patrimônio Mundial da UNESCO e seu legado é retratado no Museu de Lyme Regis, onde há uma galeria dedicada à vida da cientista. Além disso, Mary é reconhecida como uma das dez mulheres britânicas que mais influenciaram a história e a ciência, pela Royal Society.
Em 2020, a história da pesquisadora, foi retrata no filme "Ammonite" sendo interpretada por ninguém menos que Kate Winslet.
Sua trajetória é inspiradora e encoraja as mulheres em todo o mundo a participarem ativamente da comunidade científica. Por mais caçadoras de dinossauros!
Veja o texto sobre outra mídia digital. Canal: @historiafeminina.
Textos retirados na íntegra e trechos modificados dos seguintes sites:
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